sexta-feira, 14 de outubro de 2016

Os pensamentos de um caminhante previdente


Hoje, o jornal francês "Le Nouvel Economiste" publicou, em sua página na internet, "76 pensamentos inéditos de Rousseau". Em um manuscrito perdido em 1762, o filósofo genebrino teria esboçado os "pensamentos de um espírito justo", que revelariam, nas palavras usadas pelo jornal, "menos justiça que previdência".
Um exemplo pode ser visto na seguinte máxima:

"Si, lorsque je me suis aperçu, pour la première fois, que j’étais trahi, j’avais eu la force de renoncer à la personne qui m’avait trompé, je me serais épargné à moi-même des reproches et à elle de nouveaux crimes. Mais j’ai voulu des explications; elle m’a donné des assurances dont j’ai encore été sottement la dupe, et je lui ai fait ajouter des mensonges multipliés à la perfidie dont elle était coupable".

Em uma tradução livre: "Se, assim que me dei conta, pela primeira vez, de que fui traído, tivesse tido a força de renunciar à pessoa que me traiu, eu teria prevenido a mim mesmo de reprovações e a ela, de novos crimes. Mas exigi explicações; ela me deu garantias de que eu ainda estava tolamente iludido, e eu lhe fiz acrescentar mentiras multiplicadas à perfídia de que ela era culpada." O mesmo pode ser notado na seguinte: 

"C’est bien assez d’avoir contre moi mes remords pour le passé; il faut du moins m’épargner le mépris de moi-même pour l’avenir".

Traduzindo livremente para o português, Rousseau diria que "É suficiente ter contra mim meus remorsos pelo passado; é preciso ao menos prevenir o desprezo de mim mesmo pelo futuro". Mais adiante, lemos ainda:

"Quand on approche de la vieillesse, il ne faut s’occuper que du soin de faire un meilleur usage du temps qui reste à vivre, qu’on n’a fait de celui qu’on a vécu, et ne songer à son existence que pour se préparer à la perdre bientôt."

Podemos traduzir este pensamento como: "Quando nos aproximamos da velhice, não devemos nos ocupar além da dedicação de fazer um melhor uso do tempo que resta a viver, que não fizemos dele senão o que vivemos, e não ruminar em sua existência senão em se preparar para perdê-la em breve".

Em 1762, Rousseau contava com 50 anos de idade. Nesse mesmo ano, foram publicados "Do Contrato Social" e "Emílio, ou Da Educação", que são condenados à fogueira. Rousseau é perseguido e foge para Neuchâtel. Alguns anos antes, o filósofo começara a ter suas primeiras crises de mania de perseguição, iniciando um processo de tentativa de afastamento da sociedade. Creio que seus escritos revelem muitas de suas preocupações relacionadas a isso.

Indubitavelmente, qualquer pessoa que expresse seus pensamentos está exposta a críticas de todo tipo. Quando suas palavras são fortes como as de Rousseau, obviamente, essas chances aumentam. E foi, de fato, o que ocorreu: Jean-Jacques foi muito criticado por vários pensadores de seu tempo. No entanto, sua perturbação o fez caminhar solitariamente - o que deu título a sua última obra, "Os Devaneios do Caminhante Solitário", escrita em 1776, dois anos antes de seu falecimento.

Rousseau, ainda hoje, é um pensador polêmico, muito citado, porém, pouco compreendido por muitos que fazem uso de sua obra para endossar crenças políticas e até relacionadas à pedagogia. Não podemos nos esquecer de que, assim como qualquer outro autor, o filósofo genebrino possui várias obras (escritas em momentos diferentes), que expressam ideias que devem ser analisadas como um conjunto, e não isoladamente. Por mais que pensemos "caminhar solitariamente", temos outros tantos a acompanhar nossos passos e a ouvir nossos pensamentos, o que nos torna responsáveis como seres sociais em que nos tornamos - apesar de conservarmos certos traços "selvagens" que, vez ou outra, vêm à tona. 

Carmem Toledo



Autoria

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