quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

Bento Prado Jr., leitor de Rousseau

Artigo publicado no Jornal O Estado de São Paulo, Caderno 2, Domingo, 7 dezembro de 2008



Em sua análise da obra do pensador, transição entre filosofia e literatura é o que constitui a compreensão da realidade humana


Franklin Leopoldo e Silva


Rousseau está entre aqueles autores que confundem o leitor formado segundo as ortodoxias clássicas da filosofia, na medida em que um dos interesses que parecem guiá-lo é justamente o de colocar em questão o gênero filosófico. É bem verdade que, na época, outros também enveredavam por outras modalidades literárias na busca de uma ampliação da compreensão da natureza humana em seus vários aspectos, como se vê entre os amigos e inimigos de Rousseau, por exemplo, Diderot e Voltaire. Mas o empreendimento do cidadão de Genebra é mais complexo na sua gênese e no seu alcance, e A Retórica de Rousseau e Outros Ensaios (CosacNaify, 464 págs., R$ 69), de Bento Prado Jr., nos conduz ao entendimento dessa dimensão na medida em que, seguindo de alguma forma o estilo de Rousseau, constrói sua interrogação no contexto de uma diversidade considerada de modo a ressaltar a singularidade.

E isso certamente se deve à visão de que a pluralidade de gêneros a que se dedica o filósofo, longe de representar qualquer tipo de experimentação eclética, obedece a exigências profundas de articulação das categorias mais fundamentais do pensamento. Esse viés de leitura permite a Bento Prado Jr. mover-se com grande delicadeza entre os matizes de uma reflexão que é tão sinuosa nos seus meios de expressão quanto decidida e direta nas convicções que precisa expressar. Desde logo, então, as aparentes hesitações e volteios (as decantadas “contradições”) aparecem sob a inseparável duplicidade das curvas constituintes de um discurso multifacetado e da retidão ética derivada da obsessão de um desvelamento absoluto.

É nesse sentido que o trabalho de auto-constituição subjetiva se encontra com o esforço de compreensão objetiva do mundo e dos outros. Não se trata apenas de esclarecer correspondências cognitivas e relações morais; trata-se de entender como tudo isso responde ao interesse humano na constituição de uma história em que se mesclam ilusões, veleidades e contradições que constituem o enredo da civilização. Empresa em que o cuidado na construção da posição subjetiva da crítica filosófica é tão importante quanto a escolha dos procedimentos que permitirão apreender uma verdade que muitas vezes está escondida ou sepultada sob o próprio peso do valor que lhe foi atribuído.

Uma vez admitidas essas condições em que se pode passar da possibilidade à realidade do pensamento acerca de si, dos outros e das coisas, a incompreensão passa a ser parte integrante do discurso. Mas não se trata de uma incompreensão que confinaria o filósofo ao silêncio, e sim de algo a partir do qual se torna imperativo considerar de outra maneira a questão da transitividade da linguagem. O que importa, de fato: seguir as regras que governam a finalidade objetiva da linguagem, exacerbando a subordinação dos meios aos fins em proveito de uma pretensa transparência, ou recriar a função comunicativa por via de uma reinvenção da expressão? A primeira alternativa equivaleria à explicitação lógica do discurso; a segunda, a uma atenção peculiar à natureza ética da comunicação. A opção de Rousseau é clara, e revela uma decidida recusa de qualquer sinal de neutralidade da linguagem. É aqui que se situa a “anterioridade da escolha moral à decisão teórica”.

A valorização da retórica começa por ser uma admissão clara do poder da linguagem, que pode chegar à consideração do “laço interno entre linguagem e violência”. Entretanto, se a liberdade se opõe à violência, a forma de se situar no contexto de um sistema de linguagem é nele atuar de modo a modificá-lo e transcendê-lo. É nessa perspectiva que se deve entender a relação de Rousseau com os gêneros, a sua compreensão da gramática e a ambigüidade presente no seu intuito de falar aos seus contemporâneos. Considerar a linguagem exclusivamente como um meio é a melhor forma de esvaziá-la de sua finalidade comunicativa, porque o sentido da retórica nos alerta para o fato de que somente considerando a linguagem também como um fim poderemos compreender com maior precisão como ela pode interferir na formação e no conhecimento da realidade humana. Isso apareceria como óbvio se pudéssemos entender melhor a relação, intrínseca à linguagem, entre o caráter singular da construção expressiva e a exigência de universalidade implicada na comunicação. A consideração unilateral de qualquer desses dois elementos é a banalização da linguagem. Essa é a razão pela qual a interpretação, a expressão, a fala e a audição demandam “disposição”, mas, sobretudo, “do coração”.

Nessa mesma perspectiva se insere tudo aquilo que a imaginação pode revelar acerca da realidade: “imaginar o real”, de modo a superar as diferenças empíricas e atingir os traços universais. Tomar distância dos homens para compreender o Homem. Desnecessário dizer que isso nada tem a ver com abstração, mas sim com procedimentos apropriados a uma percepção do universal. É servindo-se desses aspectos que Bento Prado Jr. nos leva a compreender a ambigüidade da ficção em Rousseau, bem como a estranha combinatória entre autoria e anonimato. Por que o autor da Nova Heloisa a princípio se esconde, apresentando-se como simples editor do manuscrito encontrado? Não se trata apenas de estratégia de verossimilhança, mas sim de provocar no leitor uma relação mais complexa entre ficção e realidade. A ficção não é apenas aquilo que se faz passar por realidade; ela é um meio de desvendamento da realidade, uma abertura do “espaço de visibilidade”. Essa articulação entre realidade e ficção, sendo constitutivamente ambígua, indica que o autor deve observar uma certa “discrição” naquilo que oferece ao leitor como imaginário. A ficção deve ser suficientemente espessa para ser um exercício de imaginação; ao mesmo tempo não deve ser tão espessa a ponto de ocultar a realidade. Em outras palavras, não devemos resistir ao sonho, mas à sua tirania; sonhar não implica render-se ao sonho, mas direcioná-lo para a compreensão de uma universalidade que se não nos apresentaria na vigília.

A ambigüidade é a presença indiscernível de duas faces da realidade, de tal modo que qualquer “decisão lógica” seria empobrecedora. Rousseau por vezes acha que não tem leitores ou que estes estão no futuro. Então, para quem se escreve? É através dessa pergunta fundamental que Bento Prado traça um sugestivo paralelo entre Rousseau e Sartre, a respeito do que seja literatura. Para o filósofo da existência, é fora de propósito a pretensão de escrever para o homem universal, espécie de essência atemporal que paira acima da história. O escritor escreve para seus contemporâneos, mas isso não significa que os aceite tais quais são nem creia que eles se devam aceitar da mesma forma. A referência do escritor é o leitor presente, mas capaz de livremente imaginar o futuro, isto é, a possibilidade da transformação. Se escrever consiste em convocar a liberdade do leitor, ainda que esta esteja “atolada” na inércia do presente, isso significa que escrever é também pressentir o futuro, a liberdade que, uma vez revelada, será vivida na cidade dos fins. A convocação da liberdade se associa ao pressentimento da justiça, e é a conjugação desses fatores que move a escrita e solicita a leitura. Mas, com isso, a liberdade fica definida como “o poder de distanciamento ilimitado de que dispõe o sujeito em relação à realidade”, poder que o lança para o futuro em que a “totalidade da existência encontra-se já fechada e completa”.

Ora, para Rousseau, este não é um “poder real”, essa não é a verdadeira liberdade e essa totalidade é “má”. A liberdade em projeto é a liberdade abstrata; a liberdade real não necessita de projeto porque o seu tempo é o instante em que se realiza. Projetar-se fora de si, ser solidário com um futuro, é multiplicar os males que já nos afligem. O escritor não é aquele que pressente a justiça; é aquele que a proclama. A literatura não está vinculada à transcendência, mas à imanência. É verdade que o escritor escreve para liberdades “atoladas” - e Rousseau não espera que o mundo responda a qualquer chamamento que venha a diminuir a solidão do autor. O sucesso do romance indica que o público o toma pelo que ele não é e que a ficção desfigurou-se perdendo o intento de aludir à virtude. Quando isso acontece, o escritor torna-se apenas um operador literário, aquele que submete o leitor à “tirania do sonho”. Deixamos de nos submeter à irrealidade do imaginário quando imaginamos o real. Mas para compreender o que isso poderia significar teríamos que nos libertar da autoridade cartesiana que nos proíbe de dizer: sonho, logo existo.

IMAGINAÇÃO

Aqui se apresenta a tentação, que Bento diagnostica como recorrente nos estudos rousseaunianos, de atribuir ao autor o espírito romântico. Mas antes de enaltecer ou lamentar o “pré-romantismo” de Rousseau, seria preciso entender de modo mais preciso o significado de imaginação. Tarefa difícil, mas cuja realização nos mostra, de modo privilegiado, a sutileza hermenêutica do intérprete vencendo os obstáculos, superando a tradição e restituindo a originalidade do autor. Seria simples e fácil dizer que o Rousseau (pré)romântico seria apenas fruto de uma interpretação governada pela lógica retrospectiva. A questão, no entanto, é mais complicada. Tudo se passa como se, ao ler Rousseau, o víssemos percorrendo um caminho ladeado por apelos românticos, mas que ele atravessa sem atender. Porque, se a imaginação é transcendência, isso que nos leva para fora de nós mesmos não nos retira da realidade, mas nos faz percorrê-la por caminhos que não correspondem à ordem da racionalidade estabelecida. Aquele que vaga fora de si - o extravagante - não foge para outros mundos, não retorna a uma suposta pátria da alma, porque sua errância anima o real ao descobrir-lhe outra vida, aquela que não apareceria no caminho reto. O desvio e o afastamento não conduzem ao sobrenatural, apenas me fazem sair do “meu natural”, isto é, do caminho pré-traçado. No caminhante que devaneia, a “vigilância” não se reduz à pura vigília. O sonhador investiga, se por essa palavra entendermos que a busca deve supor o abandono como condição de pura liberdade.

É dessa maneira que a imaginação produz conhecimento, uma visão positiva cuja intensidade nos faz recuar e descrer da paisagem que um olhar mais penetrante pode descortinar. Nem espiritualismo difuso, nem subjetividade selvagem, e sim a coerência produzida pelas tensões de uma ordem que a lógica linear não poderia identificar. Mais do que o impulso da subjetividade, é a solidão de sua autêntica experiência que nos conduz à simplicidade do “sentimento da existência” que “se restabelece em sua pureza”. Como confinar essa experiência à definição dos gêneros? Como expressá-la segundo as regras da linguagem objetiva? Como restringi-la ao duvidoso critério da verdade como correspondência?

A crítica da linguagem é a crítica da representação. A conclusão seria banal se sob ela não se estendesse todo o drama de Rousseau, pensando, do interior de sua própria época, aquilo que lá fora se dá a pensar, e que só pode ser atingido pelas artes do sentimento e da imaginação. Jogo arriscado, perigoso, generoso; terrível e incompreensível seriedade; coerência oblíqua. Não é surpreendente que tenha sido desvendado por alguém cuja trajetória intelectual se caracteriza pela exploração profunda e diversificada dos meandros da subjetividade na sua irredutível complexidade. Com efeito, na inspiração do pensamento de Bento Prado Jr. encontramos a transição entre filosofia e literatura como a tensão mais intimamente constitutiva da compreensão, em ato, da realidade humana. Podemos vê-lo como ele viu Rousseau: a verdadeira antropologia é uma poética da existência.



Franklin Leopoldo e Silva é professor de História da Filosofia Contemporânea do departamento de Filosofia da FFLCH da USP

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