Em 1750, Jean-Jacques Rousseau respondia à seguinte pergunta proposta pela Academia de Dijon:
O progresso das ciências e das artes contribuirá para purificar ou para corromper os nossos costumes?
Da questão, nascia o "Discurso sobre as Ciências e as Artes", com a marcante retórica do autor genebrino e todas as polêmicas que se seguiam às suas obras. Mas, como Rousseau segue caminhando entre nós, convém trazer à tona esta questão, que é bastante pertinente em nossos tempos. Entretanto, afirmo (para desespero de nosso Caminhante Solitário) que ele não está sozinho! Ao seu lado, caminham vários outros pensadores - e eu, humildemente, coloco-me na mesma via, tentando ouvir e compreender o que conversam, enquanto tomo a liberdade de redigir este texto - uma reflexão provocativa sobre nossos dias.
Primeiramente, é indispensável ressaltar que, assim como Rousseau era um homem de seu tempo, os estudiosos que prosseguiram nas investigações sobre Ciência e Ética pertenciam a outras fases da História - que, no entanto, beneficiaram-se do Iluminismo, movimento que teve este filósofo entre seus principais autores. "Do Contrato Social", de 1762, muito influenciou várias ideias sobre democracia e soberania popular nos séculos seguintes, assim como várias ideias surgiram a partir do "Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens" (1755) e "Emílio ou Da Educação" (1762).
A Ciência, assim como outras matérias, também recebe influências de seu tempo, uma vez que depende do estudo e da formulação de hipóteses, metodologias e respostas que estão submetidas às relações entre o sujeito que questiona e o objeto questionado, ou seja, algo que envolve valores e fundamentos. Este processo é estudado pela Teoria do Conhecimento, também conhecida como epistemologia, um estudo crítico da própria Ciência.
A racionalidade científica a que estamos habituados apenas tomou forma a partir do século XIX, incluindo os estudos que pertencem hoje às Ciências Humanas. Desde então, com epistemologia e metodologia bem fundamentados, determinou-se o que é conhecimento verdadeiro, ou seja, racional. Ela está presente, por exemplo, na astronomia de Galileu Galilei (um dos precursores do método experimental durante o Renascimento, nos séculos XVI e XVII) e de Isaac Newton (séculos XVII e XVIII), bem como na filosofia de Descartes (século XVII). Em comum, eles tinham a oposição obstinada ao dogmatismo e à autoridade que o acompanhava. O conhecimento científico, a partir de então, passava a ser totalmente distinto do conhecimento vulgar ou senso comum.
Sendo assim, experiências individuais não são consideradas um "saber" pela Ciência Moderna, pois são imediatas. Seria preciso uma investigação rigorosa e sistemática dos fatos. Relatos de caso, apesar de serem usados durante a observação, são apenas dados a serem analisados e incluídos em um estudo muito mais amplo, que envolve vários outros elementos. Sozinhos, nada mais são que narrativas individuais (e, portanto, dependentes dos sujeitos e das circunstâncias) que, quando postas em comparação com outros relatos, podem gerar conclusões contraditórias.
É neste ponto que retorno alguns passos na caminhada e reencontro Rousseau, em seu Primeiro Discurso, opondo-se ao progresso científico das sociedades modernas - texto que lhe deu o prêmio da Academia. Depois disso, seguiram-se outras tantas obras, sempre criticando a civilização. Sua intenção neste primeiro texto propositivo era contribuir para a "felicidade do gênero humano" (e no entanto, o pensador coloca uma parcela considerável dos homens de seu tempo como seus "adversários") e defender o sistema "da verdade e da virtude", o que o filósofo afirma, veementemente, no "Prefácio de uma segunda carta a Bordes". Entretanto, o desenvolvimento dos princípios se dá de maneira sucessiva e o amadurecimento das ideias rousseauístas apenas surge gradativamente. Como bem diz Ciro Lourenço Borges Jr. em sua dissertação de Mestrado:
"É fundamental, portanto, que estejamos atentos a certos limites da obra no que diz respeito tanto à sua 'forma' como ao seu 'conteúdo', isto é, qualquer análise que se disponha a bem compreender as teses defendidas por Rousseau no Discurso deve evitar qualquer valorização que pretenda quer menosprezar, quer superestimar esta obra".
Outro ponto importantíssimo lembrado por Ciro em sua dissertação é que Rousseau não pode ser reduzido meramente a um autor moralista, tampouco a um "inimigo das Ciências e das Artes" ou ainda a um escritor paradoxal. É preciso uma análise mais profunda da obra para encontrar seu método crítico. Jean-Jacques Rousseau se mostra cético quanto ao critério da identificação da verdade, critica a fragilidade do espírito humano e recorre à História para provar a relação entre o progresso e a corrupção das instituições sociais. Trata-se, na realidade, do expediente da verossimilhança, e não de um vínculo irrestrito entre os fatos e a "verdade". O que Rousseau busca é a razão da degeneração humana, mas, acima de tudo, pretende persuadir um auditório diante do qual o texto será lido para, então, ser julgado. Assim, há um contexto retórico a ser levado em conta. Entretanto, tal recurso atende a requisitos ético-políticos quando, no "Prefácio a Bordes", o pensador torna a noção de verdade subjetiva e diz que seu "dever" é o de dizer "a verdade" ou o que "toma por verdade". Não se trata de uma "verdade eterna", mas de uma "verdade dialética".
Mas seguimos caminhando com Rousseau e eis que chegamos ao século XXI, a era das redes sociais. O "conhecimento científico produzido por poucos" se torna acessível a uma parcela da população através deste produto da própria Ciência (a internet)... E também as fake news circulam e chegam a esta mesma porção de pessoas. 2021: O segundo ano de uma pandemia torna ainda mais patente a circulação de evidências científicas resultantes de estudos, experiências e análises bem fundamentadas e, de outro lado, as mentiras que servem a interesses políticos e econômicos de uma pequena parcela da sociedade corrompida que se esqueceu de que aquele primeiro terreno cercado era de todos e que a terra não pertencia a ninguém.
E então, caro Rousseau, "contribuirá a ciência para diminuir o fosso crescente em nossa sociedade entre o que se é e o que se aparenta ser, o saber dizer e o saber fazer, entre a teoria e a prática"?
Deixo ao leitor a reflexão.
Carmem Toledo.
Recomendo a leitura:
BORGES JR., Ciro. Verdade e virtude: os fundamentos da moral no 'Discurso sobre as ciências e as artes' de J.J. Rousseau. 2015. Dissertação (Mestrado) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Departamento de Filosofia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015:
PRADO JR., Bento. A retórica de Rousseau e outros ensaios. São Paulo: Cosac Naify, 2008.
SOUZA, Maria das Graças de. Ilustração e História: O pensamento sobre a história no Iluminismo francês. São Paulo: Discurso Editorial, 2001.